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terça-feira, 16 de abril de 2013

Temporalidades

"Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só ficou o vento que as varreu, regressou à cidade a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendurada a saltar nos varais.
Também fiquei contente, porque existo.
Saí de casa para um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório. Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava daquela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da terra.
Senti-me feliz por não poder sentir-me infeliz.

Desci a rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o escritório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas. Não admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos cestos colocados à beira dos passeios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende porque fala, as calçadas da Rua da Prata, o rio Tejo ao fundo, azul-esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema do Universo.

Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vendedoras espertas, e os jornais do dia que o menino estendeu lado a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei que as bananas serão outras, e que as vendedoras serão outras, e que os jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma data que não é a de hoje. Mas eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo, ainda que o mesmo.

Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver não seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol dura e há bananas que vender.
Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... Não sei..."

Fernando Pessoa

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O Estranho

"Quem é alguém que caminha
Toda a manhã com tristeza
Dentro de minhas roupas, perdido
Além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
Como se levassem nos bolsos
Doces geografias, pensamentos
De além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
Vem morrer no longe horizonte
Do meu quarto, onde esse alguém
É vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
Coisas em voz que não ouço.
- Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem."

João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Sina

"Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça
o sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,
Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,
A sensação de arrepio, o medo do novo —
Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,
Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem —
Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração."
Fernando Pessoa

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Temperança

"Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo, pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente de o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida do entendimento retrospectivo...

E a luxúria única de já não ter esperanças?"


No 123º aniversário de Fernando Pessoa

quinta-feira, 17 de março de 2011

As flores e o vestido

I
Dá-me lírios, lírios, e rosas também.
Mas se não tens lírios, nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos de me dar os lírios, e também as rosas.
Basta-me a vontade que tens,
Se a tiveres,
De me dar os lírios, e as rosas também,
E terei os lírios, os melhores lírios, e as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda da tua vontade
De me dares lírios, e rosas também.

II
Usas um vestido que é uma lembrança para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou lembrada sem vista.
Tudo na vida se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos,
Guardarei o momento em que pensei que nos poderíamos encontrar.

Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
Fernando Pessoa

segunda-feira, 14 de março de 2011

Espelho

"Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."

Mario Quintana
14 de março, dia nacional da poesia

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A sós

"Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.

Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes, [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós."

Fernando Pessoa

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Termo

"O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma."
Fernando Pessoa

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O carro e o casebre

"Ao volante do Chevrolet pela estrada,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar de cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho.
Talvez à moça que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha, no térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de moça,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Na estrada ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida."
Fernando Pessoa

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

A Janela

"Não basta abrir a janela, para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego, para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela."
Fernando Pessoa

sábado, 2 de outubro de 2010

O Outro

"Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem e alguns trechos têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime."
Fernando Pessoa

domingo, 26 de setembro de 2010

As brumas do futuro

"Sim, foi assim que a minha mão
Surgiu de entre o silêncio obscuro
E com cuidado, guardou lugar
À flor da Primavera e a tudo

Manhã de abril, e um gesto puro
Coincidiu com a multidão
Que tudo esperava e descobriu
Que a razão leva tempo a construir

Ficámos nós, só a pensar se o gesto fora bem seguro
Ficámos nós, a hesitar por entre as brumas do futuro

A outra ação prudente, que termo dava
À solidão da gente, que desesperava
Na calada e fria noite de uma terra inconsolável
Adormeci, com a sensação de que tinhamos mudado o mundo
Na madrugada a multidão gritava sonhos mais profundos"
Trecho de As Brumas do Futuro,
do Madredeus.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Um lugar na vida

"Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive, todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim, não sei se sinto de mais ou de menos,
Não sei se me falta ponto-de-apoio na inteligência, consangüinidade com o mistério das coisas,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro.


Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre.

Não sei sentir, não sei conviver.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser cotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair.


Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, aquilo com quem simpatizo,
Seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus."
Fernando Pessoa

sábado, 8 de maio de 2010

Sonhos e coisas

"Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e para as coisas — uma designação igualmente indiferente na álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa...
Nessas horas lentas e vazias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser, a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação minha e uma coisa externa, que não está em meu poder alterar.
Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se erguem em coisas, não para substituirem a realidade, mas para se confessarem seus pares em eu os não querer, em me surgirem de fora."
Fernando Pessoa

sábado, 1 de maio de 2010

Tudo, nada, e outras coisas

"Não só quem nos odeia ou nos inveja, nos limita e oprime;
quem nos ama, não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido de afetos,
tenha a fria liberdade dos píncaros sem nada.

Quem quer pouco, tem tudo;
Quem quer nada, é livre;
Quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses."
Fernando Pessoa

terça-feira, 27 de abril de 2010

Alheamento

"Basta ser breve e transitória a vida para ser sonho.
A mim, como a quem sonha,
E obscuramente pesa a certa mágoa de ter que despertar.

Pudesse eu, sim pudesse, eternamente
Alheio ao verdadeiro ser do mundo,
Viver sempre este sonho que é a vida!
Expulso embora da divina essência,
Ficção fingindo, vã mentira eterna,
Alma-sonho, que eu nunca despertasse!

Suave me é o sonho, e a vida porque é
Temo a verdade e a verdadeira vida.
Quantas vezes, pesada a vida, busco
O alívio de sonhar, dormindo; e o sonho
Uma perfeita vida me parece...
Perfeita porque falsa, e porventura
Porque depressa passa. E assim é a vida."
Fernando Pessoa

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Impreciso e diverso

"Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,
Olho-os com inocência...
Nada que vejo é meu.

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.

E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.

Ah, tanto como a terra
E o mar e o vasto céu.
Quem se crê próprio erra,
Sou vários e não sou meu.

Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deixo teu diverso modo
Diversos modos sou."
Fernando Pessoa

domingo, 28 de março de 2010

Resignação

"Dói-me quem sou.
E em meio da emoção, ergue-se a de torre um pensamento
É como se na imensa solidão de uma alma a sós consigo,
o coração tivesse cérebro e conhecimento.

Sim tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo, pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou."
Fernando Pessoa

quinta-feira, 25 de março de 2010

Nos canteiros

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Destino nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento do que nos coube.
Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado."
Fernando Pessoa

segunda-feira, 22 de março de 2010

Árvore alta

"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa e ver menos.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas,
Mas se a vejo não sei o que é feito do que sinto na ausência dela."