quinta-feira, 17 de março de 2011

As flores e o vestido

I
Dá-me lírios, lírios, e rosas também.
Mas se não tens lírios, nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos de me dar os lírios, e também as rosas.
Basta-me a vontade que tens,
Se a tiveres,
De me dar os lírios, e as rosas também,
E terei os lírios, os melhores lírios, e as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda da tua vontade
De me dares lírios, e rosas também.

II
Usas um vestido que é uma lembrança para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou lembrada sem vista.
Tudo na vida se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos,
Guardarei o momento em que pensei que nos poderíamos encontrar.

Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
Fernando Pessoa